Tuesday, May 15, 2007

Razão do Sentimento de Pertença ao Porto






por Miguel Veiga


Daqui a horas é dia de celebração da liberdade e da democracia. O 25 de Abril abriu caminho tanto para a liberdade como para a democracia. Estes são os valores essenciais do 25 de Abril. Esse era o grande sonho da minha geração.
E nenhuma terra como esta nossa cidade de Garrett mais e melhor encarnou, na sua memória e até na sua próxima história, o espírito e a demanda da liberdade, essa terra prometida, e da democracia, esta convenção de uma fragilidade magnífica, magnífica, magnífica! A maior virtude do Porto foi Garrett, o mais genial dos seus filhos, quem a escreveu ao declarar que “se, na nossa cidade, há muito quem troque o b pelo v, há muito pouco quem troque a liberdade pela servidão”. E foi ele Garrett quem propôs à régia aprovação, e a alcançou, a reforma das suas Armas, colocando-lhe “em escudo de honra, no meio, o coração de D. Pedro”; o Rei-Soldado, em quem o poeta amou a liberdade, e com quem desembarcou no Mindelo, para dar umas arrochadas valentes nos miguelistas, então no poder, o que demorou o seu tempo, tanto que, durante o cerco do Porto, o nosso poeta ainda teve tempo para ir molhando a pena e escrever um romance que é uma declaração de amor à cidade onde nasceu (EA – A Cidade de Garrett).
E, nunca esqueçamos o que Oliveira Martins escreveu e demonstrou no seu “Portugal Contemporâneo”: “é o liberalismo que destrói o sebastianismo”. Foi o espírito da liberdade que derrotou o malfadado e afadistado desânimo sebastiânico.
Neste Portugal não se pode falar em liberdade sem se falar nesta cidade.

Senhoras e Senhores:

Hoje, aqui e agora, é dia do reconhecimento da cidade em alguns dos seus cidadãos e do reconhecimento destes à sua cidade.
Disse um dia o admirável Winston Churchill que uma condecoração não se pede, não se recusa e não se agradece. Acontece que, no nosso Porto e ao arrepio desse célebre dito, agradece-se. No Porto agradece-se e os hoje distinguidos vêm fazê-lo à sua cidade, nas pessoas dignas e respeitáveis dos seus mais altos responsáveis, do seu firme, determinado e inquebrantável Presidente, social-democrata de excelente quilate, e da sua plural, meritória e louvável Vereação, o que publicamente declaram com fundo reconhecimento, com sentida gratidão e, por que não dizê-lo, com a mais gostosa satisfação. Não porque se sintam credores ou sequer merecedores dessa distinção, embora não sejam cultores da hipocrisia da falsa modéstia (não somos vaidosos mas, como todos os portuenses, somos orgulhosos de sê-lo), mas por isso que vêm nela o reconhecimento da sua permanente e nunca desmentida fidelidade ao Porto.
Existe uma ética do reconhecimento que se, por um lado, anima as pessoas morais a adquirir sempre mais “estima” e “honra”, como assinalava Hobbes no seu “Do cidadão”, por um outro lado, obriga, por imperativo do dever ético, a reconhecer, por obrigação de agradecimento e gratidão, os que se tornaram devedores desse agraciado e agradecido estímulo, o que só pode certificar a autonomia moral das instituições e das pessoas que servem.
O “obrigado”, o “muito obrigado”, que hoje os agraciados vêm expressar jubilosamente à Câmara Municipal do Porto, sintetiza, na sua exclamação, a sua obrigação e o seu dever que moral e socialmente os vinculam ao seu imperativo ético de reconhecimento, de gratidão e de agradecimento.

Senhoras e Senhores:

Todos nós temos, desde que nascemos (e não se nasce impunemente no Porto), uma relação pessoal, estreita e íntima com o Porto e com a nossa gente tripeira. Relação antiga, amorosa e tormentosa esta, como a de um velho casal, atravessada de memórias e afectos, de cumplicidades e partilhas, de exaltações e desilusões, de encantos e desencantos. Na nossa tribo gregária, se há, por vezes, aquela dificuldade de viver uns com os outros, ainda há mais, sobretudo, a impossibilidade de viver uns sem os outros.
Temos sempre, desde sempre e até sempre, um sentimento de pertença ao Porto, referência e sustento da nossa própria identidade pessoal e colectiva.
Nasci, cresci e sempre vivi no Porto. As minhas raízes da terra estão no mar, no mar da Foz. Espero, na imagem do Eugénio, quando morrer, “levar nos olhos a luz do mar da Foz, atravessada por duas ou três gaivotas”.
Pertencemos a esta cidade, que nos pertence, como uma roupa que nos veste por dentro, como uma pele imemorial em que o tempo conta muito e não conta nada. Como um espelho em que nos revemos e identificamos e em que poderemos, talvez um dia e finalmente, reconciliarmo-nos connosco próprios.
O Porto, para nós, na clareza lapidar e luminosa de Sophia, é a pátria dentro da pátria. Aliás, só por mim falo, basta-me ser do Porto para ser português, como já o escrevi, com sentida embora ousada ênfase, sem embargo de outro registo, o do excelente, excelentíssimo, Vitorino Nemésio, para quem “uma ida ao Porto é sempre uma lição de portuguesismo”, Nemésio que no Porto se apaixonou “por um pouco de tudo e a paz por nada”.



Senhoras e Senhores:

Cada cidade tem o seu teorema, só que é quase sempre impossível demonstrá-lo. Ou será que as raízes das palavras são quadradas, como ironicamente questionava Yonesco? Talvez possamos surpreender o Porto numa identidade pela diferença face ao exterior e uma homogeneidade face ao interior. Uma afirmação de uma singularidade ímpar, irrepetível e inimitável. Como uma impressão digital, um ADN genético e matricial do nosso severo berço de granito, determinados por uma força gregária secularmente experimentada e marcante, libertada e derramada pelos sentimentos, pelas emoções e pelos sentidos, tocante, visível, audível, cheirosa e saborosa. O Porto também deu sentido às nossas vidas, cada uma nas suas pessoais circunstâncias, da pintura ao helenismo, da cirurgia à investigação e produção farmacêuticas, da columbofilia à advocacia, da industria automóvel à culinária, do associativismo ao automobilismo, mas todas no denominador comum da cidadania, da cidadania patrioticamente portuense.
Falta-nos, hoje aqui, o nosso tão querido amigo, o notável neurocirurgião Doutor António Rocha e Melo, “portuense ilustre” a ombrear com os “Portuenses Ilustres” de Sampaio Bruno, que se encontra infelizmente nos “cuidados intensivos” a lutar pela própria vida, ele que passou a vida a salvar a vida dos outros. Rogamos aos deuses, a começar pelos da ciência, para que ele ganhe este combate e retorne ao nosso trato, como cabeça de proa de um certo, imperecível e cosmopolita elitismo portuense (a democracia é também e sobretudo, a aristocracia dos comportamentos), personalidade, como é, da cultura e do carácter, das ciências e das liberdades, mestre das humanidades. Que falta ele nos faz, ali sentado numa dessas cadeiras, com as suas longas gaforinas brancas a badalar ritmadamente em contraponto com as suas revoltas e espessas sobrancelhas, levantadas em suspensos pontos de interrogação, de quem, como o António, sempre encarou o mundo e o seu teatro, com renovada, penetrante e infinita curiosidade. Ficamos, ansiosos, mas esperançados, à sua espera, caríssimo António.

Senhoras e Senhores:

Essa singularidade do Porto essa ninguém nos tira. Essa é que é Eça! Embora Eça, enquanto entalava o monóculo, dissesse que o Porto era “pançudo e pesado”…
As cidades, escreveu Eugénio, são como as pessoas, têm os seus segredos, e às vezes guardam-nos bem guardados. Há quem goste muito do Porto e há quem o deteste. Nós amamos o Porto. Insisto e sublinho: nós amamos o Porto. Porventura demais. Só que, quem não gosta demais, não gosta bastante. Há meses escrevia-me a minha amiga, a genial Agustina: “Miguel, meu amigo, do Porto ou se gosta ou não se gosta”. E, ponto final. Na verdade, se nos pedem razões, mais simples e radical é responder-lhe com as palavras do Senhor de Montaigne: “Parce que c’était lui, parce que c’était moi”. Porque era ele, porque era eu.
Revelou a inegualável e incomparável Agustina que o segredo do Porto era a resistência, cidade “insolúvel, comunicativa e desordenada”, que resiste às demandas da civilização, ao método para desabrochar em novas denúncias do homem, que resiste a ser igual ou desigual, a pertencer ao século”.
Até agora permanece “indeferida” a memória desta cidade, novamente com Agustina. Mas talvez a possamos começar a deferir, recuperando-a para um país, que seja, pelo menos, o que esta cidade sempre foi: um país que respeita e um país que se respeita. Um país, não um sítio. “Amo o Porto, ao mesmo tempo como uma cidade em que me sinto sempre no estrangeiro (“cidade europeia” ao contrário da arabizante Lisboa) e como cidade onde encontro as raízes da minha cultura, no que ela tem de mais especificamente português. Ou seja, no que ela tem de secreto e desmedido, de universal e intraduzível, de tradicional e libertário, de conservador e anárquico”, no depoimento lapidar e insuspeito de uma personalidade cimeira e espessa da nossa cultura, do meu caro e alfacinha amigo João Bénard da Costa.

Senhoras e Senhores:

Cidade romanesca e prosaica, arcaica e cosmopolita, tradicional e revolucionária, liberal e burguesa, rude, firme e melancólica, para nós o Porto é a cidade portuguesa por excelência.
O seu carácter vértebra-se na firmeza das suas convicções e opiniões, no respeito das diferenças e das fraquezas. O portuense sempre preferiu ao tédio dos consensos as virtudes dos dissensos, sabendo, melhor que ninguém, que não é o desacordo que faz um democrata, mas, sim, a liberdade que ele detém de não estar de acordo.
O carácter do Porto é a sua verticalidade, é a sua frontalidade, imbuída de uma rudeza franca e leal. Lá dizia o inesgotável Jorge de Sena: “Para a minha alma eu queria uma torre como esta, assim alta, assim de névoa…”. Com a luz a pique ou envolvida e vestida pela bruma, a torre exclamativa dos Clérigos é o ex-libris da nossa cidade, “cidade de luz de granito/tristeza de luz viril/ com punhos de grito.” (José Gomes Ferreira)
Portus Cale, “daqui houve nome de Portugal”, tem um perfil seguro, um género próprio, um carácter viril cuja transparência é nele nostalgia, até a luz terá a cor do granito. A luz e o granito aqui são consanguíneos.
O Porto não conheceu o destino imperial de Lisboa nem o seu culto do aparato e da aparência – aqui dizemos p’ra inglês ver –, o Porto nunca teatralizou a sua existência nem se espanta nem espaventa com facilidade. A sua alegria, que a tem, não se estampa facilmente em espalhafatos, sequer em risos. É sóbrio e discreto nos seus modos. Mesmo quando, por vezes, lhe acontece sorrir. Hostil a todas as exibições, não revela facilmente os seus talentos nem os seus defeitos. O coração do Porto não se mostra ao primeiro olhar nem é de fácil entendimento. Difícil é dizê-lo, explicá-lo. Mais vale experimentá-lo do que julgá-lo.
Rente ao dizer do imortal Eugénio de Andrade, “mas a cidade o que tem, sobretudo, é carácter, um carácter que faz do cidadão do Porto o mais belo estilo de ser português. Esta cidade, cujo espírito exasperadamente masculino fez do granito escuro das suas pedras espelho da própria alma; esta cidade cuja gente tem uma rudeza de fala e de gestos que lhe vai a matar com o seu ódio à futilidade e à hipocrisia; esta cidade, que herdou da aspereza do solo e do carão duro do rio uma solidez que leva às coisas da arte e do coração; esta cidade, nunca será demais repeti-lo, com o seu carácter eminentemente democrático e popular, torna por comparação o resto do país (……) completamente amorfo”. (in “A cidade de Garrett”) “Espírito tão genuinamente popular o desta terra, o seu espírito de fronda, que conquistou, há séculos, o privilégio de banir a nobreza dos seus muros e não permitiu ao Tribunal do Santo Ofício celebrar no burgo mais que um só auto-de-fé” (ut). Que, na sua ânsia de libertação e de peito aberto nas ruas, fez o 31 de Janeiro, implantou a República, lançou Norton de Matos na Fonte da Moura, recebeu, imenso e intenso na baixa compacta e a deitar por fora, Humberto Delgado e fê-lo disparar tremendamente pelo país fora e dentro, resistiu aos desmandos e tropelias de Corvacho e companhias, gerou e agigantou um memorável Francisco de Sá Carneiro…Povo que nunca se refugiou à sombra dos abrigos e andou sempre de mãos dadas com os perigos.
Orgulhamo-nos de pertencer a este povo de gente rija, habituada à humidade e à poluição, à poupança, à contenção e a fazer contas à sua moda, à insatisfação e a arregaçar as mangas e subir na vida a pulso, a resistir aos engarrafamentos, aos bloqueios, às descriminações e às mentiras dos governos, de todos os governos. O carácter do Porto foi sempre a sua virtude através dos tempos difíceis ou dos outros, que também nunca lhe foram servidos de bandeja. O orgulho contido no respeito pela palavra dada e por uma memória vincada. Entre nós não há a banalização da memória: o portuense tem sempre presente à sua frente, no seu futuro, o seu passado. Os povos que não têm memória estão condenados a morrer de frio. Nela também a nossa esperança. Recordo uma frase admirável de Leonardo da Vinci que trago sempre comigo: “Deus resolveu dar uma irmã à lembrança e chamou-lhe esperança”.

Senhoras e Senhores:

Vasco Graça Moura, um dos mais altos e vários espíritos pátrios das últimas décadas, admirável na poesia e na tradução, formidável na prosa, no ensaísmo e na crítica estética e plástica, com um único reparo o de ter talentos a mais, (arre que são mesmo demais!) exprimiu e sintetizou, como só ele sabe, esta nossa pertença ao Porto num trecho lapidar do “Entre o granito e a dor”: “afinal todos somos do Porto ou, pelo menos, todos fomos do Porto alguma vez na vida”.
Passo agora a palavra à magnífica escrita de Mário Cláudio a quem devemos a mais deslumbrante e espantosa revelação do rosto do Porto, “A Cidade Virgem”, com isto se significando a dourada permanência de uma intangibilidade e que tão bem nos deu a ver esta nossa cidade: “Filho de um burgo masculino e feminino, incapaz de se amoldar ou de se submeter, mas curioso das suas paixões, que rótulo deverei eu plantar-lhe? Pai e mãe como se revela o Porto, ora oferecendo um colo húmido de dolências, ora um receio de afagos que apenas se esboçam, que diversa etiqueta lhe caberá, mestiça de dois princípios, senão esta que lhe apus, pátria do chão que me viu nascer, mátria do fogo que me há-de queimar? E o ar e a água serão das brumas inevitáveis, do Atlântico que à praia roja os que demandam as luzes do cais”.
Chamo também pelo meu discreto e elegante amigo, José Domingos da Cruz Santos, presente em todas as horas, ausente em todas as mundanidades, para quem um livro é sempre mais do que um livro e a literatura a prova de que a vida não chega, criador e editor das mais belas obras que houveram corpo e nome no Porto e de cuja pena afiada e criticamente lúcida colhi este naco: “Dois acontecimentos grandes se produziram (…): um, a Casa da Música, que talvez venha a ser o único que no futuro lembrará o Porto 2001; outro, a destruição do belo Jardim Romântico de João Chagas, mais conhecido por Jardim da Cordoaria, como em tempos igualmente incivilizados e sem memória aconteceu ao Palácio de Cristal. Entre estes dois lugares de possível afecto e de inevitável repúdio, o aumento que muitos receiam irreversível da desertificação da baixa (…) Ainda não sabemos que cidade irá substituir a que ainda há pouco trazíamos nos olhos. É cedo para nos regozijarmos ou para lágrimas, mas dentro de algum tempo se saberá de que lado nos ficará o coração”.
Mais invoco a legítima, honrada e fundada autoridade de Helder Pacheco, o nosso republicano, republicaníssimo conterrâneo, portuense de rija cepa “doublé” de acrisolado portista com o dragão ao peito, que tão rigorosa e minuciosamente tem vindo a historiar, contar e cantar este nosso caloroso e apertado “sentimento do Porto”, para vos dizer, citando-o, que: “As cidades com alma (…) têm os seus espíritos. Os seus sentidos profundos. Os seus mistérios e segredos. As mil e umas coisas, explicáveis ou inexplicáveis, que fundamentam o seu carácter e distinguem a sua identidade. Coisas simples, aromas e ruídos, espaços e cores, luminosidades e penumbras. Falares. (…) Vendo as coisas assim que estação me lembra o Porto? A Primavera? O Verão? O Outono ou o Inverno? Para mim a resposta é simples e inequívoca: o Porto é uma cidade outonal. Uma cidade de entardeceres suaves e nostálgicos (…) de brumas ténues e cerrações difusas, de tons esbatidos lembrando aguarelas como as de António Cruz. Uma cidade atlântica (…) sem sul, contida em espaços de penumbra, (…) nas ruas onde pairam, subtis, a obscuridade, o vazio, a noite”.
E peço ainda a palavra emprestada ao meu íntimo amigo e companheiro de trabalho, Luís Neiva Santos, na perfeição do seu dizer: “O Porto tem, de facto, um não sei quê de tão genuinamente seu e só seu, que não sei se vai do granito para a alma, endurecendo-a sem lhe diminuir os sentimentos, se da alma para o granito, humanizando-o pela via do trabalho dos canteiros, hoje já quase desaparecidos”.
E, por fim, apelo ao fraterno irmão que não tive, Artur Santos Silva, que, na linhagem magnífica e exemplar de seu avô Eduardo e de seu pai Artur (a quem eu próprio tratava por Pai Artur tanto eram por ele o meu afecto e tamanha a minha admiração) caminha o caminho caminhado pelos seus, o da mais alta e recta cidadania, da probidade e inteireza do carácter, da coragem moral na demanda dos valores da República, das liberdades e da democracia. Ei-lo de pé na escrita, mas de mãos dadas com o seu, nosso, Porto: “Não me sei ver noutra cidade que não seja o Porto com que me sinto totalmente identificado. (…) A cidade diz-me muito e não sei pensar fora dela. (…) “Sinto a cidade do Porto”… como me sinto a mim próprio em casa. Contemplo este Porto que me acolhe, esta minha cidade de eleição, que escolheria, mesmo se nela não tivesse nascido. É uma relação de afectividade e de proximidade, uma quase cumplicidade, como a que se sente quando se está na nossa casa, com a família e com os amigos, ou como quando a ela se volta com a ternura da saudade”.

Senhoras e Senhores:

Não podia eu deixar de convocar e invocar tão queridos, talentosos e admiráveis amigos, para a eles também me juntar, neste fim de tarde da celebração do nosso Porto em que o nosso afecto portuense sobe e se consome, arde, estremece na haste mais alta da melancolia.
São, todos eles, portuenses de corpo inteiro, como nós, como vós, e as suas vozes falam por nós, por vós. É urgente escutá-las, guardá-las, apregoá-las nas suas palavras, cheias de memória, um cristal, um punhal um incêndio ou orvalho apenas (E.A), palavras que são as nossas, são as vossas.
É urgente recolhê-las, lembrá-las, lançá-las ao vento e à nortada, no tempo que passa e no tempo que fica, para que o corpo da sua escrita seja a voz do que do íntimo de cada um de nós, cada um a cada um, irrompe, agarra, rasga, frutifica e fica. E fica.

Senhoras e Senhores:

No Porto se conserva e permanece algo do perfil orgulhoso das cidades-república do Renascimento. Titulou-o Jaime Cortesão, que sabia da poda, de “Cidade-Estado”. Escreveu-o então, só que entrementes houve mutação na sua acção colectiva. Mudaram-se os tempos, mudaram-se, as vontades, e, sobre elas, as potestades… …
Orgulho estribado numa vitalidade singular de concentração no trabalho, em que se recusa, as mais das vezes, a frivolidade e até a sociedade do espectáculo e do contentamento, para não dizer também aquela espécie da comunicação social que fala, numa metade, do que não sabe, e na outra, cala o que sabe.
A energia, a coragem, a iniciativa e o valor foram aqui sempre postos, com base no trabalho e esforço individuais, não só para ganhar e vencer na vida, quantas vezes a pulso, mas também para alcançar o sucesso, o êxito e a notoriedade, tanto económica como socialmente. O gosto pelos negócios foi sempre dominante na cidade. Ganhar dinheiro, é certo, mas sobretudo subir de nível de vida numa procura de ascensão social, fundamental no ânimo da burguesia, apurando a educação, o gosto, a cultura. Vai daí, a mobilidade social que sempre distinguiu o Porto. A sua burguesia vem do trabalho. Ser burguês do e no Porto não era um privilégio concedido mas uma condição de que ninguém seria excluído pela sua origem e que cada um pode atingir pelo empenhamento corajoso no trabalho. É a recompensa dos melhores, já que no Porto a superioridade deixa de assentar no sangue. O burguês, ao contrário do nobre, precisava de demonstrar capacidade para o lugar que ocupava na sociedade. E apesar de ser, com frequência, conservadora embora liberal, a burguesia portuense foi-se renovando porque continha no seu seio a sua própria contestação. Dir-se-ia que no Porto a tradição e o progresso caminharam a par, num percurso repleto de avanços e recuos.
Parafraseando a nossa sábia e erudita Professora Helena Rocha Pereira, a primeira senhora a doutorar-se na Universidade de Coimbra, “a vida ensinou-me que, e cito um provérbio grego, as coisas belas são difíceis”.
Cidade do comércio vinhateiro e do negócio do vinho, que é o sabor desta cidade, o sotaque relevante do Porto não é o da sua pronúncia nem da sua fala – embora os portuenses não sejam cautos nem castos na linguagem – mas um certo sotaque do seu ser, aquele sotaque dito por João Cabral de Melo Neto a Manuel Bandeira: “Certo sotaque do ser/acre mas não espinhadiço/ que não pôde desaprender/nem com sulistas nem no exílio./”.
Mas o seu defeito capital, que os tem, pois então, é a sua míngua de poder e da falta de organização articulada e conjugada das suas élites intelectuais, culturais e empresariais. O Porto é um prestígio à procura de um poder. O eixo local do Porto como cidade não atinge o centro da região nacional ou de um espaço regionalizado transnacional. E, se há uma subalternidade da capital do Norte face à capital do País, mesmo a centralidade do Porto como capital nortenha já começa a ser posta em causa por outras cidades nortenhas em plena expansão, crescimento e desenvolvimento.
O produto nacional desceu na medida em que o do Porto baixou, o que prova o seu significante e importante relevo na criação da riqueza.

Senhoras e Senhores:

O Porto não é um sitio, um lugar, não é apenas um pedaço de geografia, mas um povo com o sentimento intenso de ser portador da esperança da sua permanência, de um tecido, de uma rede de significados e imagens que nos permitem a coabitação dentro de um espaço e cuja produção se refere a esse tecido.
A cidade, esta nossa cidade, é, em si mesma, um artefacto cultural. Repositório de memórias de um tempo antigo, de uma identidade, ela é, ao mesmo tempo, lugar permanente de mudança e de relação. Relação de afinidades electivas, tecida por uma comunhão de gostos e de contragostos, de repulsas e preconceitos, de exaltações e de indignações, por um consenso de linguagens, por um acerto de olhares, e, até, de reflexos, mas, sobretudo, dos afectos das nossas águas mais silenciadas. A ternura é o mais difícil e nós tantas vezes nos enternecemos. Como uma árvore, às vezes penso, o homem pode subir alto, mas as raízes não sobem. Estão na terra, para sempre, junto da infância e dos mortos (Vergílio Ferreira)

Senhor Presidente, Senhores Vereadores, Senhoras e Senhores:

As nossas raízes, as nossas vidas, algumas delas já puxadas e avançadas, depõem a favor da nossa pertença, pela razão e pelo coração, ao Porto. É indizível a nossa gratidão pela vossa generosa e honrosa distinção, um momento alto da nossa tremente emoção, embora mal traduzida pela minha escrita tremida. Estamos hoje aqui para lhes agradecermos e para lhes dizermos da fidelidade que devemos a esta cidade e que manteremos viva até ao momento inexorável da partida. Dessa fidelidade que, (como o admirável Eugénio a escreveu), é a fidelidade ao homem e à sua esperança de sê-lo inteiramente; fidelidade à terra onde mergulha as raízes mais profundas; fidelidade à palavra que no homem é capaz da verdade última do sangue, que é também verdade da alma.
E com ela me fico e tenho dito ou, (como diria Camilo), por aqui me fecho, agradecendo a vossa presença e a vossa paciência, o que faço, avisado pelo conselho que Luís de Camões, numa sua carta de Ceuta, nos deixou expresso “Que eu, se muito for por este caminho, darei em enfadonho. Inda que pareça já me não livrará privilégio de cidadão do Porto”. Obrigado a todos e que viva o Porto!!




Aos dias 24 de Abril de 2007, nos Paços do Concelho, no Porto, em sessão solene de agraciamentos.

MIGUEL VEIGA
"Este o dicurso foi lido por Migul Veiga seu autor, na Câmara do Porto, depois da entrega das Medalhas de Ouro de Homenagem pelo Sr Presidente da Câmara e o Presidente da Assembleia Municipal, ao próprio Miguel Veiga e a Outros individualidades, assim como à Eng. D. Helena Rocha Melo, esposa do Dr. António Nogueira da Rocha Melo quando este estava doente no Hopital. Dr. Miguel Veiga, um Amigo, vai estar no meio dos Penafidelenses no dia 19 às 15h em Homenagem ao António Rocha Melo, com EVOCAÇÃO". Levado a efeito pelo Museu Municipal.
(Napoleão Monteiro)

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