Sunday, May 01, 2016

Tião Bessa

Tião Bessa O Conde 1927- 2016 Penafiel ficou mais pobre. ” Visão de Napoleão Monteiro” Um ano depois desta foto, precisamente no dia das mães aconteceu o que vai acontecer a todos, “dormir para sempre”. Esta história de vida do Tião Com texto publicado a 18 de dezembro de 2014 de André Rocha, diz tudo e de minha parte por agora sem mais comentários. Tião Bessa Sebastião Bessa nasceu em Penafiel a 9 de Novembro de 1927. De signo escorpião, a ferroada da ironia com que, aos 86 anos, descreve a realidade política e social da cidade, do país e do mundo, é um impressionante sinal de lucidez. A sua memória usa tromba e orelhas de abano. A forma como se expressa demonstra também que, o seu carácter, nunca foi de rato. O olhar é baço, perdido entre cataratas vesgas e uns lábios que encolhem para o interior da boca, denunciando noites dormidas com o repousar de dentes em copo, sobre o lavatório da casa de banho. Os dias de calor conhecem-lhe uma toillete clássica, absolutamente irrepreensível que, juntamente com a narrativa popular (das conversas "à boca pequena") de alguns episódios recambolescos da sua vida, lhe valem o epíteto de Conde. A "noite" tem vindo a enquadrá-lo em fotos junto de alguns dos mais afamados decotes da região, na zona VIP de acesso às mais populares casas de diversão. Ultimamente, a cevada que toma na mesa do canto do bar, acaba, invariavelmente, curvada sobre a justeza de um sono capaz de causar inveja aos jovens que, cambaleiam estados ébrios, a seu lado. No Inverno, o cuidado da idade, conhece-lhe samarras, luvas e gorro. Usa este adereço como forma de transmitir, aos que o rodeiam, o seu estado de espírito... Desde o clássico "gorro de Pai Natal da Super Bock", com que presenteia os espaços nocturnos nessa época festiva, até ao orelhudo "gorro soviético" que gosta de envergar de cada vez que, a América, precisa de revitalizar a sua economia, por via armada, num qualquer país do Médio Oriente. Desenganem-se os que pensam que, a sobriedade absolutamente revolucionária deste homem, se perde na designação jocosa de "figura típica" ou "pintas". A verticalidade da sua presença, já lhe valeu ser cabeça de cartaz de campanha fotográfica de uma das mais conceituadas casas de pronto-a-vestir da região, inteligentemente intitulada de "os clássicos estão na moda"; bem como, o convite para representar, o papel principal, no videoclip de um tema que figurou na banda sonora de novela de horário nobre. Nas palavras do próprio, atingiu o auge agora, por ter de se levantar, todos os dias, no rabujar das 7:30, para se deslocar à Misericórdia onde, duas simpáticas enfermeiras, o banham, com a diligência de um sorriso e cuidado no toque. (Tem como plano de curto prazo reformar a sua casa-de-banho, para que possa receber essas mordomias no aconchego da sua casa e não ter de enfrentar a madrugada e o despertador.) A história da sua vida, confunde-se com a história da nossa cidade. Não há Penafidelense, independentemente da idade ou da condição social, que não o conheça pelo nome próprio. Ainda assim, poucos têm o prazer de lhe serem íntimos, ao ponto de partilharem o conhecimento que habita nas entrelinhas das suas preocupações. - " Não há pessoa que goste mais de Penafiel do que eu!" - Afirma, várias vezes, com a voz trémula. Enquanto acrescenta que não compreende a classificação do clube de futebol da terra na 1ª Liga ou questiona como é que, o poder local, não reinaugura o edifício do antigo cinema, numa altura que se aproximam os festejos do seu centenário. - "Pensem comigo. O cinema tem 120 anos e, o Cine-Teatro de Penafiel, 100. Penafiel é uma cidade pequena do interior Norte do país e, inaugurou uma sala de projecção de filmes, 20 anos depois da sua criação." - Acrescenta, enquanto vai ao fundo da sala de sua casa, buscar rolos de películas originais, tão valiosas como as mais badaladas peças da nossa memória colectiva. Tião Bessa tem mais dois amores na sua vida, para além da cidade. O karaoke e as mulheres. Diz que gosta da juventude e que o futuro lhe pertence mas defende a ideia de que, os mais novos, andam muito desligados do que interessa... A nossa história comum. Cultivando atitudes absolutamente fiéis e condizentes com o que apregoa, invade os palcos dos bares, de microfone na mão, cantando música tradicional portuguesa. "Oliveira da Serra" é o seu tema preferido. É difícil que não acabe a actuação entre aplausos, acompanhado por "parteneres" bem pimbalhocas que gingam pronunciadamente a anca e, colocam os seios a tremer, por via do levantar dos braços. Sustenta que, entre mulheres mais velhas e mais novas, prefere as mais imaturas. Atira que Charles Chaplin só foi feliz quando casou com uma mulher 30 anos mais nova que ele e, entre recordações da ex-mulher de um polícia (com quem se amantizou) que lhe fugiu com o recheio de uma das contas bancárias, ainda acrescenta que o sexo feminino só está com um homem porque procura alguma coisa nele. Umas o dinheiro, outras a fama, o companheirismo, a família... Não vê grande diferença. Para ele, pagar as vaidades de uma rapariga nova ou os caprichos de cabeleireiro semanal de uma mulher madura, acaba por ser a mesma coisa. Como tal, prefere as que o fazem sentir vivo e não as que o incomodam constantemente com queixas. O passado do personagem franzino e frágil de um corpo que a idade teima em curvar, mostra um homem que não tem tempo na alma. Apenas um infindável rol de "estórias" que cruza em narrativas absolutamente incríveis. Viveu sempre "à frente do seu tempo". Foi um resistente e um revolucionário, sem nunca ter levantado uma arma ou proferido uma "bandeira" política em público. Pareceu sempre viver dentro da calma aparente da ordem, cultivando atitudes marginais, movendo-se nas entrelinhas que existem entre os favores devidos pelos que têm poder decisório e as necessidades dos que dependem das suas leis. Em plena ditadura, transportava "mulheres da vida", pelas diferentes casas de alterne da região. Imensas, sustenta. - "Na altura de Salazar, toda a pobreza se calava!"- Argumenta ainda. Essa "profissão" fê-lo conhecer todos os artistas que, brilhavam a ribalta dos palcos, à época, jantar nos mais refinados restaurantes e nas mais imundas tascas... Conversar com homens que se vestiam de mulheres e vendiam o corpo, recorda, rindo-se muito perante a quantidade de amigos seus que gabavam os encantos femininos da verdade mascarada... Lembra amigas, dessa vida, que depois de uma noite de trabalho, pediam um "prego" para pequeno almoço e ainda acrescentavam uma manhã ao expediente, porque a filha ia casar no mês seguinte. Chama-lhes "mães coragem" e, como uvas em cacho, atira alguns raciocínios sobre a vida e obra de Brecht. A carrinha servia para ir a Espanha, numa altura em que, transpor fronteiras, era "obra do Diabo". De lá trazia, todo o tipo de vinis proibidos pelo regime, para os amigos. Há quem diga que, nessa altura, Penafiel era um verdadeiro paraíso musical para os jovens. Ouviam-se os Beatles, os Rolling Stones e os The Doors nos sotãos da intimidade... Transportava, a coberto de saias que segredavam o ouvido de guardas fronteiriços, livros censurados e novas dos que resistiam em Paris. Ainda fazia a contabilidade e tratava de papéis de tribunal a muitas "almas" menos afortunadas, entre diligências a médicos, juízes e proprietários abastados. Recorda que, Penafiel teve, durante décadas, um baile anual, no Lago do Sameiro, ao qual ocorriam pessoas de todo o país. - "Do Algarve, por exemplo!"- Tendo sido essa, uma das grandes razões para o crescimento populacional da cidade, à época. Apesar de uma narrativa fluída e consistente, percebe-se um orgulho e, talvez, uma entranhada amargura, quando fala desse baile. Pára uns instantes. Hesita. Antes que me seja possível começar a conjecturar sobre uma possível desilusão amorosa, continua... Diz que, na nossa humildade, fomos sempre grandes. Que tivemos de tudo mas não lhe soubemos dar o nome certo e por isso o perdemos. - "Fomos a primeira cidade do país a ter um metro de superfície" - Atira - Referindo-se ao comboio que ligava, mercadorias e passageiros, desde o cais fluvial de Entre-os-Rios até às fábricas têxteis da Lixa, passando mesmo em frente à Câmara Municipal. Ainda recorda que já fomos sede de Diocese e que, a Igreja da Misericórdia, tem lá os bancos onde os Bispos se sentavam. Fala, com orgulho, de sermos a segunda cidade mais antiga da região. Defende que tivemos estreias de peças de teatro de Almeida Garrett, a nível nacional, e que, na questão da "Geração de Coimbra", grande parte dos escritores realistas, viveram cá um período das suas vidas e colaboraram com a imprensa regional. Lembra que, agora, temos estudantes universitários mas que, já aquartelamos a Infantaria do Exército e que, o policiamento da cidade, foi assegurado pela Polícia de Segurança Pública em dois períodos distintos, 1928 e 1972. Depois pára e pergunta se sabemos o que significa essa distinção, elucidando que, a PSP, só faz patrulhamento nas áreas urbanas de vital importância para o país! Conta ainda que, da primeira vez, a polícia saiu de cá porque, o cunhado do Capitão, que era barbeiro, aparou a garganta de um cliente bem rente e o caso foi "abafado". Enquanto narra, vai convidando à bolacha ou ao abafadinho que tem guardado para os amigos. Lentamente, começa a ceder ao cansaço e deixa-se adormecer. Às vezes no sofá, outras, de pé, junto ao aparador. Preocupado diz que: - "Se calhar não passo deste Inverno!"- E volta... - " O cinema vai fazer 100 anos. Não há quem o festeje?" Depois de o vermos descansado, saímos, devagar, fechando a porta. A grande questão é que, dificilmente, Tião Bessa sairá do nosso entendimento colectivo. Vejo-o da mesma forma que ele vê a cidade... Viveu sempre à frente do seu tempo, sem que nunca ninguém desse o nome certo a essa condição. Eu afirmo que, Sebastião Bessa, é património material e imaterial do nosso imaginário e que, já merecia ser recordado como tal, não por uma biografia marginal mas pelos que, politicamente, têm forma de o fazer. Publicado 18th December 2014 por André da Rocha