Monday, May 21, 2007

 LEMBRANDO ANTÓNIO ROCHA E MELO 







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por MIGUEL VEIGA

Com António Rocha e Melo, o meu querido, muito querido, António, habitámos, anos a fio, sempre calorosos e resplandecentes, nunca ensombrados ou sequer reticentes, a amizade. A amizade é o lugar na terra onde mais gosto de viver. A amizade é o essencial, o sal, o sol da vida. É ela quem nos trouxe, a todos, hoje aqui na memória reconfortante do nosso querido António. Reconfortante porque aqueles que não têm memória morrem de frio. É a amizade que nos funda e funde, nesse laço e traço de afinidades electivas, tecida por uma comunhão de gostos e de contragostos, de repulsas e preconceitos, de exaltações e de indignações, por um consenso de linguagens, por um acerto de olhares, e, até, de reflexos, mas, sobretudo, dos afectos das nossas águas mais silenciadas. A ternura é o mais difícil e nós tantas vezes nos enternecemos. Como uma árvore, às vezes penso, o homem pode subir alto, mas as raízes não sobem. Estão na terra, para sempre, junto da infância e dos mortos. (Vergílio Ferreira).
Juntos estamos do António Rocha e Melo, adormecido para todo o sempre. Ignoro para onde foi, suponho que para lado nenhum. Desconheço mesmo se o António tinha algum Deus em quem acreditasse e qual ele fosse. Se bem que tanto tivéssemos falado sobre tudo e sobre nada, o nosso infinito era a curiosidade sobre a vida e sobre o humano, guardando discretamente para cada um as nossas próprias perplexidades sobre o “além” e sobre as especulações metafísicas, que silenciávamos como monges a trocar silêncios, embora com o respeito de quem não considerava a metafísica como uma espécie da literatura surrealista. O António era um “buscador do mundo”. Deste nosso mundo terreno.
O António Rocha e Melo nunca quebrou as regras. No sortido código de comportamentos éticos, sociais, cívicos, e profissionais, o António foi sempre o exemplo dos seus mandamentos, a rigorosa, respeitável e desejável referência, o humanista militante e tolerante, a máscara reconfortante, a persona dignificante, o coração justo, a mão generosa e gratificante. E não apenas o homem de bem (embora do outro lado do muro dos dogmas das “verdades reveladas” e das “cartilhas da salvação da história”), mas também o homem bom (desamparado embora das muletas das escolásticas), e, ainda e mais, o honorable and distinguished gentleman, o autêntico cavalheiro na verdadeira excepção da palavra. Era um homem de carácter, na firmeza das suas convicções e na compostura das suas coerentes acções, vincos da sua forte, ímpar e singular personalidade. Honra lhe seja, que lha devemos! A tout seigneur tout honneur!
A sua vida constituiu a prova provada do ensinamento de Goethe: “Agir é fácil; pensar é difícil; agir de acordo com o que se pensa é ainda mais difícil”. É que, como se dizia na antiga sabedoria grega, “as coisas belas são as mais difíceis”.
Traço marcante da singular personalidade do nosso querido António era também a sua constante fidelidade à divisa legada por Leonardo da Vinci: um ostinato rigore. Um obstinado rigor era a legenda do brasão d’armas deste admirável príncipe na aristocracia dos comportamentos, a qual constitui e institui a própria democracia, sim, a democracia, essa convenção de uma fragilidade magnífica, magnífica.
E foi esse mesmo obstinado rigor que o fez mestre na neurocirurgia e lhe deu famoso e incontornável nome, dentro e fora de muros, no saber e na prática do seu notável profissionalismo e na maîtrise das conquistas e progressos da sua ciência. Rocha e Melo ficará para todo o sempre ligado à história da neurocirurgia portuguesa.
O António era um homem profundamente afectivo. Inseparável da sua Lena, adorava os seus filhos, encantava-se, deslumbrava-se e derretia-se com os seus netos, contagiando e derramando à sua volta e do seu clã, com as suas irmãs e excelentes sobrinhos, e dos seus fraternos amigos, aquele clima de afectos, raiz, fonte e salvação das nossas vidas.
E, abono o que digo com as palavras matinais e orvalhadas do clássico: se as rosas, que só duram um dia, fizessem histórias e deixassem memórias umas às outras, elas diriam: “Nós vimos sempre o mesmo Jardineiro; de memória de Rosa só o vimos a ele; ele foi sempre feito tal como ele é; certo que ele não morre como nós: ele só não muda” (Benard Le Bovier de Fontenelle, Entretiens sur la pluralité dês mondes).
Será também de lembrar que o imperador Adriano, nas memórias ficcionais de Yourcenar, quando pensava aproximar-se o fim, afirmava: “Je suis ce que je l’étais; je meurs sans changer”. “Sou o que era; morro sem mudar”. Mas revolta-se contra a insubmissão do seu corpo que, gasto na caminhada, exigia finalmente repouso: “toda a minha vida confiei na sabedoria do meu corpo (…) O meu corpo não cessava de fundir-se com a minha vontade, com o meu espírito (…) mas o camarada inteligente de outrora já não passa de um escravo que resmunga no cumprimento da sua função” (toute ma vie j’ai fait confiance à la sagesse de mon corps (…) Mon corps cessait de ne faire qu’un avec ma volonté, avec mon esprit (…); le camarade intelligent d’autrefois n’est plus qu’un esclave que rechigne à sa tache).
Médico e cientista, o António era, a par, um homem de cultura, um mestre de humanidades, fiel exemplo do pensamento de Abel Salazar de que um médico que só sabe de medicina nem de medicina sabe.
O António acreditava na literatura que, no dizer Pessoano, é a prova de que a vida não chega. Cria na pintura, nessa poesia que se vê, pedia-lhe o desejo que a visse, nessa fonte que explode de legibilidade porque exactamente o não diz.
Cria na música, que cava os céus, que é a alma de geometria, que dá forma ao silêncio, que é o único prazer sensual sem vício, sabendo que sem ela a vida seria um irremediável erro.
E, como crente e praticante nessas esferas, (nessas esferas, que não n’outras), coabitava afectuosa e familiarmente, nos seus vários poisos, com livros, pinturas e discos, cultivando-os amorosamente com aquela razão gulosa, com aquela sensualidade do entendimento que leva àquela incrível doçura dos sentidos, aos indizíveis sentimentos da emoção que derramam, irrompem e fazem acender as luzes da razão.
E, mais ainda, cultivava o António o chá, nas suas mais esquisitas espécies, tendo como imprescindível companheira a sua inseparável cup of tea. Julgo que esse hábito e gosto lhe pegaram ao corpo lá por terras das Escócias. Vaillard observava que tinha descoberto a razão porque os Anglo-Saxões preferiam o chá: é que tinha provado o seu café! Certo é que o chá traz inspiração e espírito àqueles que os têm e insónias àqueles que os não têm. E o António, com chá ou não, era um homem de espírito.
De uma ironia contida, não corrosiva, aprumada e polida, mais insinuada do que atirada, ele sabia que o humor é o caminho mais curto de um homem a outro. E que fazer humor é transformar a vida numa larga e tolerante benevolência, próxima da caridade. É a faísca que encobre as emoções, que responde sem responder, que não fere e diverte. O único remédio que desata os nervos do mundo sem o adormecer, que lhe dá a liberdade sem o enlouquecer e entrega nas mãos dos homens, sem esmagá-las, o peso do seu próprio destino (Max Jacob).
Curiosamente, o António, sem deixar de ser o grande e admirável médico que era, dotado de um olho e de um faro clínicos de tiro e queda, era dotado dessa peculiaridade tão reconfortante para os seus pacientes: ele tinha um verdadeiro temor reverencial pela doença, por qualquer doença, por todas as doenças. E, por isso, o António as tratava tão bem, com o cuidado, com a atenção, com a reverência, com a inclinação e o beija-mão, enfim, com o respeito que se lhes deve. E o certo é que, elas, agradadas e reconhecidas com tão galante e atencioso tratamento, se retiravam e desapareciam do palco, às arrecuas, sem sobressalto e dando por fim o seu indesejado acto.
Terei também de dizer, neste esboço de retrato do António, que ele tinha um perfil seguro, um carácter viril que se vertebrava na firmeza das suas convicções e no respeito das diferenças, erguido numa verticalidade imbuída de uma frontalidade franca e leal, num orgulho contido no respeito pela palavra dada e por uma memória vincada. O sotaque do seu ser era vincadamente portuense, na esteira dos “Portuenses Ilustres” que Sampaio Bruno decantou e destacou na sua famosa obra e que, um dia, quando actualizada, terá de certeza o nome do António Rocha e Melo, por indiscutível mérito próprio, em cimeiro lugar de destaque, como cabeça de proa de um certo e imperecível elitismo portuense, tão arcaico quanto cosmopolita. O António nunca se refugiou à sombra dos abrigos e, nos combates da liberdade e da cidadania, andou sempre de mãos dadas com os perigos. Nunca, por nunca, hipotecou a sua liberdade de homem livre a nada nem a ninguém. Sabendo, na sua lucidez, que nunca chegaremos à Liberdade, terra prometida, ele sabia que talvez amanhã possamos conhecer e viver, terras conquistadas, novas liberdades. E, nessa conquista, o António sempre empenhou a sua rebeldia, o seu inconformismo, a sua resistência, a sua cidadania.
Do recorte e porte da sua figura, tão singular, original e “sui generis”, ninguém deixava de notar e de se impressionar com aquele Senhor, sem idade aparente ou de quem teve sempre a mesma idade, agasalhado em tweeds, lãs e caxemiras em todos os tons dos marrons, com uma longas gaforinas brancas a badalar ritmadamente e a aconchegar o fino e esguio pescoço em contraponto musical (adagio cantabile e sostenuto?) com umas espessas e revoltas sobrancelhas, levantadas em suspensos pontos de interrogação de quem, como o António, olhava o mundo com renovada e infinita curiosidade. Até na figura, visto de fora, o António era único, irrepetível e insusceptível de imitação.

Senhoras e Senhores, Amigas e Amigos:

Faz-se-me tarde a mim, que não sei ver as horas, como os Chineses, nos olhos dos gatos. E um texto que se pretendia curto, é como um carro de um só lugar: não suporta esperar. Reparo agora como o tempo só faz falta no fim.
Terminarei assim com um poema recentemente escolhido pelo próprio António para um livro, dito de “Homenagens e Outros Epitáfios”, destinado em primeira mão pelo Eugénio “A Jorge de Sena, no chão da Califórnia”, mas que agora tão bem fica ao António aqui no chão de Penafiel:
“É por orgulho que já não sobes
as escadas? Terás adivinhado
que não gostei desse ajuste de contas
que foi a tua agonia?
É só por isso que não vieste
este verão bater-me à porta?
Não sabes já
que entre mim e ti
há só a noite e nunca haverá morte?
Não te faltou orgulho, eu sei;
orgulho de ergueres dia a dia
com mãos trementes
a vida à tua altura
- mas a outra face quem a suspeitou?
Quem amou em ti
o rapazito frágil, inseguro,
a irmã gentil que não tivemos?
(… …)
Andaste por muito lado a ver se o mundo
era maior que tu – concluíste que não.
Tiveste mulher e filhos portuguesmente
repartidos pela terra,
e alguns amigos,
entre os quais me conto.
E se conta o vento.”

Mas o que nós queríamos, no mais fundo de nós, dizer-lhe, comovida e tremidamente, é da falta que o António nos faz e vai continuar a fazer pelas nossas vidas fora e pelas nossas vidas dentro.
E por aqui me fecho.



Aos dias 19 de Maio de 2007,
no Museu de Penafiel
MIGUEL VEIGA

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